segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

figurinos literários 1

estou com um vestido de seda natural, bastante surrado, quase transparente. foi de minha mãe, certo dia ela achou que era claro demais e me deu. é um vestido sem mangas, muito decotado. tem a cor arroxeada da seda natural muito usada. uso-o com um cinto de couro, talvez de um dos meus irmãos. não me lembro dos sapatos que usei naquele ano, apenas de alguns vestidos. quase sempre estou de sandálias de lona, com os pés à vontade. falo do tempo que antecedeu o colégio de saigon. depois que entrei no colégio, naturalmente sempre andei de sapatos. naquele dia devia estar com aquele famoso par de saltos altos de lamé dourado. não me lembro de nenhum outro que pudesse estar usando naquele dia, portanto, é com eles que estou calçada. saltos de liquidação comprados por minha mãe. uso o lamé dourado para ir ao liceu. vou ao liceu com sapatos de noite, enfeitados com pequenos desejos de lantejoulas. por minha vontade. não posso conceber-me sem aquele par de sapatos e ainda agora me quero com eles, os saltos, os primeiros da minha vida, são lindos, eclipsaram todos os sapatos que tive antes, sapatos para correr e brincar, baixos de lona branca. não são os sapatos que dão a nota insólita, estranha à figura de menina naquele dia. o que há de inusitado naquele dia é o chapéu de homem em sua cabeça, com abas caídas, de feltro cor-de-rosa com larga fita preta. a ambigüidade determinante da imagem está no chapéu.como chegou às minhas mãos não me lembro.não consigo imaginar quem mo deu.acho que minha mãe o comprou a meu pedido.a única coisa certa é que era um saldo de liquidação. como explicar essa compra? nenhuma mulher, nenhuma moça usava chapéu de feltro masculino ,na colônia, naquela época. nem mesmo as nativas. eis o que deve ter acontecido:experimentei o chapéu de feltro, por brincadeira apenas, olhei-me no espelho da loja e vi: sob o chapéu de homem, a magreza ingrata do corpo, aquele defeito da infância , parecia outra coisa. deixou de ser um elemento brutal , fatal, da natureza. transformou-se em algo oposto, uma escolha que contrariava a outra, uma escolha intencional. subitamente é algo desejado . subitamente vejo-me como outra, como outra será vista, lá fora,à disposição de todos,à disposição de todos os olhares, lançada na circulação das cidades, das estradas, do desejo. seguro o chapéu , não me separo mais dele, é meu, aquele chapéu que me possui inteira, não o largo mais. quanto aos sapatos, deve ter acontecido algo semelhante, mas depois do chapéu.eles contradizem o chapéu, como o chapéu é uma contradição ao corpo franzino, portanto assentam em mim. também a eles não largo mais , vou a todo lugar com aqueles sapatos, aquele chapéu, na rua, com qualquer tempo , em todas as ocasiões , vou à cidade.


 marguerite duras - o amante - pag 13 e 14

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